Fernando, Deus e as sardinhas


No peito, aquela angústia que preferia adiar, nos olhos as lágrimas insistiam em dar sinal de si, mas o sorriso não o abandonou e insistiu em prevalecer.

A hora de maior calor em Lisboa já tinha passado, apesar de se sentir que já nos íamos aproximando do Verão.


Umas noites antes da véspera de Santo António, era a altura ideal para Fernando ir a Alfama comer as sardinhas pelas quais ansiava o resto do ano.

De calções caqui que lhe davam ligeiramente acima do joelho, sandálias de couro e camisa de manga curta por fora dos calções, sentiu-se bem e descontraído.

Vestir calções era uma novidade para Fernando, mas o calor dos últimos dias e alguma necessidade de maior liberdade empurraram-lhe a experimentar algo já quase esquecido.

Nesta altura ainda se podia andar em Alfama e apreciar a arte popular dos arraiais que se fazia mostrar através das bancas, palcos e decorações de rua.

Além do mais, se Fernando queria viver um pouco da animação dos “Santos”, tinha que ser nesta altura porque na véspera de Santo António, tinha sempre afazeres derivados da sua vocação que limitavam, ou mesmo anulavam, o seu tempo disponível.

Sem pressa, desceu as Escadinhas Norberto Araújo sorrindo à senhora que num banquinho forrado com uma toalha branca com galos de Barcelos estampados, vendia copinhos de ginjinha cuidadosamente dispostos numa bandeja de inox.

Depois de passar por um altar de Santo António, de onde sobressaía um conjunto de velinhas do Ikea, meteu-se pelo Beco da Corvinha, descendo até às Escadinhas de São Miguel.

A tarde ia avançando, e por todo o lado havia gente a descer e a subir as ruelas do bairro.

Dos dois lados das escadinhas, os moradores da zona construíram estrados de madeira como base das suas bancas onde colocaram mesas cobertas com linóleo e bancos corridos de madeira.

Cada banca, com a fachada decorada a rigor, ficava virada para as escadinhas por onde passavam os foliões.

O grelhador de cada banca, exibido orgulhosamente, era o centro das atrações, ocupando posições diferentes em cada banca, mas nunca em posição secundária, esperava o seu momento de brilhar, assando as tão procuradas sardinhas e outros petiscos típicos dos santos populares.

Todos os anos, estas bancas começam a ser montadas durante o mês de maio e a noite mais concorrida é a de 12 de junho, véspera do dia de Santo António, quando os bairros típicos de Lisboa, Alfama, Mouraria e Costa do Castelo se enchem de gente até não caber nem mais uma alma.

Cada família, ou grupo de amigos, dessas escadinhas e ruelas dos bairros, tem a sua banca que decora a rigor.

No Largo de São Miguel, tal como noutros largos estrategicamente escolhidos, são montados palcos onde atuam bandas que animam a multidão com êxitos populares.

Os barulhos da montagem do palco e ligação da aparelhagem sonora do Largo de São Miguel misturava-se com os testes dos cantores.

Qualquer amante dos santos populares sabe que o arraial só está completo com a banda a cantar “O Pai da Criança” e outros êxitos populares. São músicas que no dia-a-dia a maior parte das pessoas nega saber, mas que no momento em que são cantadas, e de preferência já com um grão na asa, todos as sabem cantar.

Os “A’s” e “B’s” dos testes sonoros fazem crescer na multidão a expectativa de início da banda e também aumentando a ânsia do início do bailarico.

Fernando adorava uma bela sardinhada neste ambiente, esperava um ano inteiro por este pequeno prazer de que usufruía desde criança.

Tinha nascido não muito longe dali, na zona da Graça, mais para os lados da Feira da Ladra, ao Campo de Santa Clara, onde era muito conhecido pelos moradores mais velhos.

Os companheiros da sua criação mudaram-se quase todos para os arredores de Lisboa, para lugares como Massamá, Seixal ou Alhandra.

Em Alfama, apesar de para ele ser como a sua segunda casa, ninguém o conhecia, o que acabava por ser uma vantagem se queria espairecer um pouco e comer as suas sardinhas em paz.

No ar sentia-se algum cheiro dos diversos fogareiros e grelhadores, espalhados pelo bairro, que iam libertando o fumo do carvão ardente.

O “Postigo de Santo António”, “Alfama é Linda”, são nomes de bancas a que Fernando sorria ao ler, lembrando-lhe os antigos filmes portugueses.

Enquanto Fernando descia as escadinhas de São Miguel, foi observando a cena típica daquele momento. Absorvia toda a boa energia que podia, preparando-se para a conversa que teria com o seu amigo António, uma conversa desejada, mas nem por isso fácil.

Já passavam das seis da tarde e, nas Escadinhas de São Miguel, em frente de cada grelhador, havia alguém que se encarregava de pôr as brasas no ponto certo para dentro de nada poderem receber o que se quisesse grelhar.

Por esta altura, com o carvão dos grelhadores a aquecer, ainda se mantinha no ar o cheiro do petróleo usado para atear o lume.

Um ferro comprido para picar o carvão, um instrumento que parece uma pá pequena, mas comprida para manusear as brasas e um abanico óbvio, eram as ferramentas que se repetiam em cada grelhador, para além de uma garrafa de litro e meio de água a fazer de borrifador para acalmar as labaredas que insistirem em levantar a garimpa.

Fernando foi descendo e, quase no Largo de São Miguel, sem se questionar porquê, olhou para uma das bancas e, também sem pensar muito no caso, pareceu-lhe que essa era a banca ideal onde sentar-se à espera do seu amigo António, para mais tarde partilhar umas sardinhas e a conversa.

Quem estava nessa banca eram locais.

Nas escadinhas continuavam a passar algumas pessoas, notoriamente turistas com aquele ar descontraído e carregados de pontos de interrogação no olhar, perante todo aquele aparato bizarro que se montava e não sabiam bem do que se tratava.

Fernando olhou para dentro da banca, e como num jogo de ping-pong entre chineses, assim estava a conversa entre os elementos dentro da banca.

“Ó amigo, vai uma cervejinha? É que se quer alguma coisa do grelhador ainda vai ter que esperar um bocado que estou ainda a atiçar o carvão”, disse Pedro, o mestre grelhador dessa banca.

Fernando, com um sorriso perante a simpatia do homem, respondeu que um copo de vinho tinto lhe daria muita satisfação e explicou: “Estou à espera de um amigo que virá um pouco mais tarde, lá mais para a hora do jantar”.

Sem se virar e continuando a picar o carvão, Pedro disse, sobrepondo a sua voz ao som da televisão, que isso da hora do jantar era muito vago porque os “camones” não tardavam a começar a querer jantar e os “tugas” só lá para as oito é que começavam a sentar-se para sardinhas.

“Sente-se que já tratamos de si”, resolveu Pedro.

Pedro, o mestre grelhador desta banca, era um homem possante. Serralheiro de profissão, tinha construído o seu grelhador com base numa metade de bidão metálico que comprou no ferro velho de Camarate.

Nascido e criado em Alfama, tem assistido, com desagrado, à transformação do bairro num grande aglomerado de casas para turistas.

A casa que está atrás da banca é sua, não deve nada ao banco, foi-lhe deixada pelos pais. Apesar de já lhe terem oferecido uma pipa de massa pela casa, diz que dali só sairá numa caixa de madeira com os pés para a frente.

Em criança, ajudava o pai que Deus tem, a grelhar as sardinhas em alturas dos “Santos”, agora é a sua vez de as grelhar e, enquanto puder, assim continuará.

De camisola de alças e calções azul petróleo, comprados nos saldos do Continente, enfrenta o grelhador com a mestria que só a longa prática pode dar. Quem achar que assar sardinhas é fácil então que as venha assar, prove-as e depois mande bocas.

Em cada banca, o respetivo grelhador ia-se aprontando e os vários mestres grelhadores iam trocando graçolas entre si. Notava-se que a sua relação era de longa data, talvez se conhecessem de terem crescido juntos ali mesmo à volta da Igreja de São Miguel.

Durante mais de meia hora digladiaram argumentos futebolísticos em que o FCP era o mais castigado nos comentários gerais e tendo, notoriamente, menos adeptos entre os presentes.

Apesar de já estarmos em junho, ainda custava a engolir o facto do Benfica ter perdido em casa contra o Porto em meados de fevereiro. Talvez fosse a falta de um certo treinador de quem ninguém queria admitir fazer falta.

Ao fundo da banca, um ferrenho benfiquista ia mandando umas bocas secas conforme a conversa se desenrolava.

Entre as suas palavras notava-se um azedume pelo facto de Jorge Jesus, fazer agora um ano de ter deixado o Benfica e ido treinar o Sporting. Raios partam o homem. O Sporting? Era lá coisa que se fizesse?

Fernando, divertido com a conversa, ou talvez mais divertido ainda com a interação dos participantes, limitava-se a ir rodando o copo de tinto, a ouvir e a sorrir.

A televisão ia marcando o passo das conversas quando, Maria, mulher de Pedro, baixinha e troncuda, abundante de peito e pernas, trajando umas calças de algodão justinhas que faziam relevo à sua roliça forma de andar, saiu de dentro da casa a resmungar com o “raio da bola … é todo o dia … “, agarrou no comando, mudou de canal e voltou a entrar em casa continuando a falar sem se entender nada do que dizia.

Na televisão passava as notícias que falavam de um caso que teria acontecido há cerca de um ano. Via-se na televisão o que parecia um corpo inanimado deitado numa praia à beira de água.

Ninguém teve qualquer reação até que, claramente, todos entenderam que se tratava do corpo de uma criança quando o jornalista referiu que o menino sírio de três anos, que deu à costa numa praia turca, havia morrido vítima de naufrágio na tentativa de alcançar a costa grega, à semelhança de tantos outros refugiados.

O menino acompanhava os pais e o irmão, numa épica tentativa de um dia se reunirem com os familiares a morar no Canadá.

Ao deixar a costa turca, o pequeno barco insuflável que seguia com, talvez, o dobro da lotação, naufragou a poucos minutos de ter iniciado a viagem.

Porque não havia coletes salva vidas para todos, ou porque esses coletes estavam deficientes ou nem sequer existiam de todo, o desastroso resultado foi, mais uma vez, a perda de muitas vidas humanas na que se incluía a do menino da notícia.

Do fundo da banca ouviu-se um “foda-se” seco e magoado.

Fernando viu a imagem atónito, sem reação. Não sendo nova, era uma imagem sem prazo de validade.

Temas que envolviam crianças eram-lhe especialmente queridos e colocavam-lhe particularmente sensível.

Este tipo de sensibilidade acentuada é muito comum em quem tem filhos mas Fernando, mesmo não os tendo, partilhava dessa sensação e com bons motivos.

Talvez porque os seus fins-de-semana eram repletos de sons alegres de crianças barulhentas ou talvez também pelo muito trabalho de apoio social com crianças de bairros carenciados ao longo dos anos, o tenha aproximado às crianças e assim ter desenvolvido uma sensibilidade especial pelos mais pequeninos.

“Não entendo … não posso entender …” balbuciava Pedro, enquanto gesticulava com o picador para o ar.

“Metem-se nuns barquinhos que mal servem para andar pela costa e querem atravessar algum mar mais a sério.”

Sem muito pensar, mas com candura, Fernando referiu que fugiam de vidas horríveis, vidas de que nós só ouvimos falar. Neste caso, o pai que sobreviveu e viu a sua mulher e dois filhos morrerem no naufrágio, tentava alcançar a costa europeia na esperança de ser uma porta para uma vida melhor.

Longe dele dizer que seria certo ou errado arrastar uma família para algo tão arriscado, mas havia que entender as escolhas e as motivações que em desespero conduzem a comportamentos extremos.

“Mal sabem as nossas crianças a sorte que têm ao estar num país como este. É certo que temos os nossos problemas, mas nada que se compare … meu Deus … que desgraça”, disse Fernando profundamente consternado.

O velho ranzinza lá do fundo, Manuel, mas a quem todos chamavam de Manel, bateu com a sua mini com força na mesa, com tanta força que o linóleo não abafou o som e Pedro virou a cabeça em direção do ruído. Então o velho exclamou: “Deus? Que Deus? Isso é tudo fantochada, Deus não existe”

O sorriso de Fernando ficou mais ténue e o seu olhar mais interrogativo.

Quem não havia ouvido isso antes? Não era novidade para ninguém, mas a intensidade como tinha sido dito não deixava dúvida que muito haveria sido deixado por dizer.

Manel era homem de poucas falas e menos amigos. Não porque fosse pessoa desagradável, mas porque só procurava os amigos de longa data e pouco, ou nada, os novos.

De testa franzida e músculos definidos pelas cargas e descargas com que trabalhava diariamente, tinha um ar saudável acentuado pela sua pele morena do sol, apesar de ser inevitável vermos nele alguém envelhecido.

Agora relativamente perto da idade da reforma, de entre os poucos grandes amigos que tinha, viu partiu não há muito tempo, o seu grande companheiro de infância, o pai de Pedro.

Pedro e Manel, conheciam as posições de ambos sobre quase todos os assuntos e este não era original. Só Fernando parecia ver algo novo neste caso.

Em geral, discussões sobre a existência de Deus devem ser tão frequentes que não deve haver quem não as tenha tido e Fernando não era exceção.

Na sua conciliadora forma de ser, Fernando referiu que não raras vezes temos dificuldade em compreender os caminhos de Deus, mas tal não significa que não exista.

Enquanto Fernando falava, o velho expressou um esgar abanando a cabeça endireitando-se um pouco e, sem deixar Fernando chegar ao fim, cortou a conversa com uma estocada: “Tem piada, se uma criança vê monstros no quarto quando a luz do quarto se apaga, dizemos-lhe que apesar de ela os ver, os monstros não existem. No entanto, quando Deus faz acontecer algo de que não gostamos, ou até achamos mau, nós não O vemos, mas dizemos que Deus existe e que somos nós que não o compreendemos. Não será que nas duas situações há, simplesmente, explicações deste mundo e não do outro?”.

Esta contra-argumentação apanhou Fernando agradavelmente desprevenido, apesar de serem interrogações que não lhe eram estranhas.

“Deus não existe … uma fantochada” insistiu Manel.

Pedro, num rápido encolher de ombros, mostrou a falta de novidade do assunto que não podia ficar sem resposta.

Não que tivesse a solução para o problema. Ainda assim, olha para o amigo e lembrando-lhe que em criança frequentou a catequese onde Manel tinha sido batizado.

Nessa igreja fez também a Primeira Comunhão, onde estavam a maioria dos amigos da sua criação e Manel estava a assistir. Bons tempos em que Alfama era um bairro “à séria”.

Hoje em dia, a maioria dos amigos com quem cresceu, dispersaram-se pelos caminhos da vida. Poucos são os que ainda moram ali e menos ainda os que vão à missa.

O velho, após meter mais dois tremoços na boca, e continuando com o seu ar de palavras secas, diz que o mundo é igual para esses seus amigos que ainda acreditam como para si que não acredita. Acreditar ou não, não faz qualquer diferença. Existir Deus ou não, é irrelevante.

Fernando não resistiu a dizer que Deus existe para todos, quer acreditem ou não.

“Mantenho a minha pergunta: então qual a diferença?” e Manel deu uma palmada na mesa que fez saltar o pratinho de tremoços e cascas.

Pedro lembrou a Manel que não temos que olhar para Deus como uma entidade que permite, ou não, que as coisas aconteçam “Porque não olhas para a vida de Cristo como exemplo? Se fosses à missa já terias ouvido isto” disse Pedro ao seu amigo.

Manel nem pestanejou a responder que Cristo não era grande exemplo. Bastava verem que não lhe correu bem a vida e que Deus, se existe, nem ao seu filho ajudou.

E, afinal de contas, para que morreu Cristo na cruz? Para hoje em dia podermos assistir às atrocidades que presenciamos?

Se Deus existe, é todo misericordioso, como ele ainda se lembrava de ter ouvido na missa e tem todo o poder que lhe é atribuído, como é que deixa que tanto mal exista na Terra?

Fernando ouvia as palavras de Manel que pareciam encaixarem-se em compartimentos pré-determinados e tinha as suas ideias sobre o assunto, mas estava indeciso sobre a melhor forma de as partilhar naquele momento.

A sua normal agilidade de raciocínio, parecia tropeçar em pedras mentais e, à indecisão, juntava-se uma estranha dificuldade de falar sobre o assunto.

Olhou em seu redor e mais uma vez cedeu ao seu lado de partilha.

Começou por dizer que nem tudo o que acontece é obra divina. Deus deu livre arbítrio ao Homem para que este fosse livre nas suas escolhas e ser consequente nas suas ações.

Pedro para de espicaçar o carvão, olha para Fernando e diz-lhe que essa do livre arbítrio que se conta de Deus, não pode ser bem assim.

Fernando não esperava essa interrogação de Pedro e não podia ter ficado mais intrigado, sorriu e Pedro continuou.

“Então se Deus sabe tudo, pode tudo e conhece o presente e o futuro, não há ação do homem que Ele não saiba que vai acontecer, então o livre arbítrio é muito questionável”.

Fernando identificou a ratoeira em que se tinha metido, mas continuava indeciso se haveria de aprofundar esta conversa.

Pedro sente a necessidade de dizer que o facto de ter fé, não queria dizer que não tivesse as suas dúvidas e que acreditar em Deus era uma opção.

Manuel sentiu-se apoiado.

Uma vida com mágoas incuráveis fazia-se notar na atitude de Manel que visivelmente travava muitas palavras antes que fossem partilhadas.

Nas escadinhas continuavam a passar os turistas que paravam para fotografar Pedro que espicaçava as brasas.

Entre a multidão aumentava a percentagem de grupos de portugueses ruidosos que ali vão aumentando com novos comparsas.

Os pedidos de jantar continuavam a ser recusados, mas não tardariam a poderem começar a serem aceites.

Manel levantou-se e entrou na casa dizendo alto a Maria que ia à casa de banho.

Pedro, vendo o amigo a afastar-se, aproveitou o momento para se dirigir a Fernando e contar-lhe algumas coisas que preferia dizer sem que Manel estivesse presente.

Manel é um grande amigo da família. Pedro lembra-se dele desde sempre e Manel lembra-lhe, com frequência, que andou com ele ao colo.

Num gesto automático, a expressão de Pedro fica mais grave como que tivesse sido atraiçoado pelo seu pensamento. Diz a Fernando que é um ano mais novo do que seria Zé, o filho de Manel que morreu com 16 anos, há quase trinta anos.

“Muito novo, o que se passou?” perguntou Fernando.

Aos 16 anos, após uma fase em que Zé andou muito pálido, perdeu o apetite e começou a ter nódoas negras sem se entender porquê.

As coisas eram diferentes nessa altura. Deviam ter ido ao médico logo que começaram a ver que alguma coisa não estava bem, mas ninguém sabe se isso teria feito alguma diferença.

Quando foi ao médico, depois de uns testes, soube-se que tinha leucemia e, talvez, em seis meses apagou-se depois de ter estado uns três meses internado no IPO.

Quando o Zé morreu, nem parecia o mesmo de branco e magro que estava.

Pedro lembrava-se muito bem do Zé. Eram amigos desde o jardim de infância, onde ficavam quando os pais iam trabalhar.

“Como pode imaginar, o Manel e a mulher ficaram de rastos” disse Pedro ainda com um ar grave. “Deixaram de ver os amigos, parecia que viviam só um para o outro até que já não podiam um com outro e o Manel voltou a aparecer mais por aí”.

O Zé andou sempre um ano à frente dele na escola, mas encontravam-se nos corredores e pátios. No bairro andavam muito juntos.

Foi nessa altura que foram interrompidos por um “Boa tarrrde”, dito por alguém com um forte sotaque americano, era Nancy.

Enfermeira reformada, há cerca de um ano tinha escolhido Portugal para passar um tempo da sua reforma.

Maria, apesar de lhe ter aplicado um daqueles interrogatórios à portuguesa, não conseguiu saber as razões desta escolha de local para viver, nem saber com quem Nancy vivia. Talvez possamos dizer, ainda não conseguiu saber, porque se há coisa que Maria não sabe é desistir de saber da vida alheia.

Pedro fez-lhe um gesto convidando-a a juntar-se ao grupo e Nancy, alta, com pernas e braços fortes, de imediato levantou uma mão em thumbs up, tirou os óculos escuros e apressou-se a escolher um dos bancos corridos onde se encaixou com dificuldade, quando Manel reaparece vindo de dentro da casa.

“Olha o que trouxe a maré” disse o velho esboçando o que parecia ser o primeiro sorriso do dia.

Após Nancy ter dito que o mar não tinha trazido nada, Pedro explicou a Fernando que Nancy estava a tentar aprender português e as confusões que fazia eram mais do que muitas e que havia que ter paciência.

Fernando sorriu e estendeu a mão a Nancy, apresentando-se e dizendo que também tinha chegado há pouco à banca. Esperava por um amigo com quem tinha combinado uma sardinhada.

“Portuguese sardines … very good” disse Nancy com o seu sorriso de orelha a orelha.

Pedro não perdeu a oportunidade de envolver Nancy na conversa que Fernando pensava já terem abandonado e que não fazia questão de retomar.

Nancy, para além da sua vida profissional enquanto enfermeira, ao longo da sua vida tinha feito muitas ações de voluntariado em África onde contactou com muitas realidades diferentes.

Apesar do seu sorriso constante, conseguia-se perceber através do olhar e forma de falar que Nancy seria uma pessoa firme.

Seria essa firmeza uma característica intrinsecamente dela ou impressa pelo exercício da sua profissão durante os seus anos de serviço? Uma boa questão que ficou por resolver.

“Nancy, estávamos aqui a falar sobre Deus. Se existe ou não existe. O que acha?”

Nancy arregalou os olhos e disse “Oooh … isso preciso vino como Sr. Fernando … não pode falar assim sem nada”

Todos se riram, e Maria que já ali estava à espera da sua oportunidade para falar com Nancy, agarrou um copo de plástico, chegou-se à box de vinho tinto D. Ermelinda Freitas, apertou a torneirinha e encheu o copinho pedido.

Sem perguntar nada, abriu a arca frigorífica que se via estar repleta de bebidas, pegou numa Mini Sagres e estendeu o braço a Manel que agarrou a garrafa, também dizer palavra.

Fernando tapou o copo com a mão direita em jeito de “Obrigado, mas não quero mais nada por agora” e Nancy lançou um “saúde” a que todos acompanharam.

Nancy teve o seu tempo de trabalhar com doentes em estado terminal, passou pelos cuidados intensivos, mas também viu em África uma pobreza e miséria que antes só havia tido conhecimento através de documentários.

Com um profundo e sonoro “Well”, Nancy começou a responder a Pedro sobre essa pergunta milenar.

Disse que, acima de tudo, não sabia.

Às vezes parecia que indiscutivelmente só poderia existir algum ser superior que olha por nós e que é o responsável por atos que só os podemos apelidar de milagres.

Não são raras as situações, sem que haja explicação científica para tal, de recuperação de doentes que haviam sido dados como perdidos. Milagre ou falta de conhecimento que um dia será colmatado? Não sabe.

Mas por outro lado há as situações que nos ficamos a questionar onde estava Deus nesse momento. Foi o caso dos resultados do furacão Katrina, em 2005, que matou mais de 1500 pessoas nos Estados Unidos …

“Que Deus, que nada … “, arremessou Manel cortando a conversa.

Pedro, aproveitou a dica de Manel e deixa claro que, se tem dificuldade em aceitar o assunto do livre arbítrio quando resulta em inocentes serem prejudicados por causa dos atos humanos só para Deus não ter que limitar a liberdade dos homens, então não entende porque razão Deus permite atos da natureza que resultam em tantas perdas de vidas humanas que, seguramente, nada teriam feito de mal ao mundo.

Veja-se a situação do tsunami na Indonésia, em 2004, que resultou em mais de 225.000 mortos. Que Deus é este?

Fernando ia tentar intervir quando Nancy recordou a indiscutível ajuda que é prestada por muitos missionários e voluntários em África que têm por base organizações da Igreja. Muito perentoriamente disse que não podemos esquecer este trabalho.

Manel, que só havia suavizado a sua secura para um breve sorriso a Nancy, levanta-se e também em tom mais alto, exclama “AAhhhhhhh … mas isso é outra coisa … isso não tem nada a ver com Deus … as pessoas quando querem são mais do que esse Deus … isso de ir à missa e bater no peito não serve para nada, mas ações concretas é outra coisa …”.

Em todo o tempo que o filho havia ficado internado, Manel desfazia-se em elogios às equipas de médicos e enfermeiros que trataram do seu Zé.

“Pessoas de verdade, é o que vos digo. Pessoas de verdade é o que faz falta e faz a diferença”.

No grelhador de uma banca ali ao lado, o sal aspergido para cima das sardinhas já crepitava nas brasas e, por entre golfadas de fumo, podíamos ver as sardinhas, ainda miudinhas, mas já entre o azulado e o acinzentado de bem grelhadas.

Se o fumo fosse elegante, diria que bailava de cima para baixo bafejando a multidão. Porém, fumo de grelhadores é coisa do povo e, se há algo que o que o fumo de uma sardinhada faz com mestria é empestar democraticamente todos quantos dele passam perto.

No largo de São Miguel a música começou, era o início do baile. Nas escadinhas, o rebuliço era constante, as várias bancas já começavam a receber os primeiros clientes e Pedro lançou um orgulhoso “tá quase” a olhar para o carvão já bem quente.

Maria viu a sua oportunidade e lançou-se na sua cruzada “Então? Está mais contente com o seu prédio? Da última vez que aqui esteve não me pareceu muito contente lá com uns vizinhos”.

Seria desta que conseguiria saber com quem vive Nancy? Só a tinha visto uma vez com uma amiga e a sua forma prática de ser e vestir davam-lhe sinais intrigantes que lhe picavam a curiosidade.

Mas Nancy só teve tempo de olhar para Maria e talvez ainda estivesse a traduzir as palavras portugueses quando Manel, com ar muito afeto disse a Nancy: “Se Deus existe, muito mal vai a sua igreja com aquelas situações dos padres americanos e as crianças”.

Entre o desconforto e a surpresa, Nancy só conseguia repetir “shame … shame on them” porque o pouco português que sabia não lhe parecia expressar bem o que sentia.

Pedro, manda entrar um grupo de jovens, já meio alegres, que perguntavam se se podiam sentar. Maria logo se apressou a pôr os talheres em que cada conjunto fora previamente enrolado num guardanapo de papel.

As brasas estavam no ponto e era hora de começarem a assar sardinhas.

O largo ia-se enchendo e a banda já cantava animadamente.

António tinha ido de táxi até ao Museu do Fado.

Já lhe tinham falado várias vezes da Uber, e de todas as suas vantagens, mas tantos anos a levantar a mão e mandar parar um carro de praça, talvez se viesse habituar a algo diferente, mas ainda não tinha sido desta.

O taxista era-lhe conhecido e a conversa até ao destino fora animada.

Do Chafariz de Dentro ao Largo de São Miguel foi uma caminhada curta apesar de ser a subir e António ter que ir furando caminho por entre a massa de gente que vinha aos “Santos”.

Passado o Largo de São Miguel, e assim que começou a subir as escadinhas, encontrou sem esforço o seu amigo Fernando.

Ao trocarem olhares, os sorrisos foram imediatos.

“Olá Fernando, que gosto ver-te depois de tanto tempo, estás ótimo.”

Os novos amigos de Fernando perceberam que havia chegado o amigo esperado que interrompia a conversa.

“Padre António” disse Fernando “não podia estar mais contente de o ter aqui comigo, nem sabe há quanto tempo anseio por este encontro, mas calculei que queria um tempo de recato após aquela situação tão desagradável”.

António nunca tinha conhecido outra vocação em toda a sua vida.

Foi sempre um grande dinamizador das paróquias por onde passou, quer nas aldeias de interior após ter sido ordenado quer nas várias paróquias em Lisboa onde esteve a maior parte da sua vida. E, do seu tempo de professor no Seminário de Almada, guarda grande amizade com a maioria dos seus alunos que fizeram um grupo no Facebook com o seu nome.

Agora com sessenta e sete anos caracterizava-lhe um sorriso franco e constante mas também uma misteriosa tristeza no seu olhar brilhante.

António passou por um tempo de vida que jamais teria imaginado possível para si. Foi injustamente acusado de pedofilia, que alegadamente teria existido durante o seu tempo de sacerdócio numa paróquia nos arredores de Lisboa, acusações das quais acabou por ser inquestionavelmente ilibado.

No entanto, como todos sabemos, só pela acusação, foi crucificado em praça pública, sem direito a defesa. O povo tem memória curta e esqueceu, mas António viverá com as memórias desse tempo.

Hoje em dia, António dedica-se a dar apoio aos padres que foram ou podiam ter sido seus alunos. Diz que, através daqueles com quem, das mais diversas formas privou e que viverão para além dele, ele poderá servir a Deus por muito mais tempo.

“Deixa Fernando, não te apoquentes, Deus sabe a verdade, vocês sabem a verdade, eu sei a verdade e todas estas verdades são uma só. Mas diz-me rapaz, fala-me dessa crise de fé que dizes estar a colocar-te a questionar o teu sacerdócio?”

“Manel”, a voz de Maria era inconfundível, “afasta-te daí que vêm os clientes” e Manel vai lá dentro da casa buscar uma cadeira que estava à volta da mesa da pequena sala de jantar e trouxe-a cá para fora para se sentar a um canto.

As conversas com os novos amigos haviam terminado quando se ouviu a banda a começar a cantar “O Pai da Criança” e a multidão a acompanhar em coro, o arraial estava completo.

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