O sarguinho de Vieria de Leiria
Olá,
Vou-lhe
contar uma pequena história e no final terei uma pergunta para si: que resposta
daria nesta situação?
Então aqui vamos:
Manuel não
consegue identificar quem o possa ter influenciado a gostar tanto de pescar.
Aliás,
lembra-se bem da primeira vez que foi à pesca e com quem, mas não considera
esse momento como uma influência, mas sim um abrir de portas para algo que já
ali morava.
Fora isso,
não se recorda de sentir o mínimo interesse pela pesca nem em miúdo nem quando
já era mais crescido.
Sobre a
primeira vez que foi à pesca era impossível esquecer-se. Foi como um daqueles
amores à primeira vista que se diziam impossíveis antes do primeiro beijo.
Tudo
aconteceu no Verão do seu segundo ano de casado, em que ele e a mulher alugaram
uma casa perto da praia de Monte Clérigo para passarem uns dias de férias.
Nessa altura,
nem um anzol sabia empatar.
Num dos
finais de dia de sol vermelhão, na vivenda ao lado da sua, um jovem casal,
sensivelmente mais velhos que ele e a mulher, preparavam-se para o jantar.
O dito
casal, tinha um grelhador estrategicamente posicionado no quintal que há algum
tempo tinha denunciado as suas intenções fazendo picar as narinas dos vizinhos
com o cheiro a querosene das acendalhas.
Mas, passado
pouco tempo, o fumo que saia do grelhador já era branco e com um doce odor do
carvão em brasa. Ao mesmo tempo, denunciava o tipo de jantar que estava prestes
a acontecer.
Entretanto, Manuel
ouviu um carro que estacionou na rua tranquila. Espreitou por cima da sebe que
dava para a rua e viu sair da dita viatura um outro casal da mesma faixa etária
que os seus vizinhos.
O casal
dirigiu-se para a casa do grelhador.
“Vizinho,
vizinho”, ouviu Manuel que automaticamente virou a cabeça para o lado de onde o
seu vizinho o chamava junto à cerca.
Vestido,
pronto para sair e ir jantar a Aljezur, Manuel esperava a mulher enquanto esta
acabava a infindável tarefa de se arranjar.
A conversa
clássica de que Manuel estava sempre à espera da mulher, nesse dia ainda não
tinha tido ocasião de acontecer, mas não parecia tardar.
Manuel
aproximou-se da cerca e, educadamente apresentou-se e cumprimentou o vizinho.
“Boa noite.
O meu nome é Manuel. Chamou-me? Que belo grelhador aí tem …”
“Olá. Sou o
António. Era mesmo sobre isso que lhe queria falar. Começo por lhe pedir
desculpa, se calhar o fumo incomodou-os. Queremos convidá-los para se juntarem
a nós para o jantar, se não tiverem outros planos, claro está.”
Manuel,
apanhado de surpresa, não sabia o que dizer.
Então o
vizinho do grelhador acrescentou: “Hoje fui à pesca e correu muito bem. Tenho
aí peixe que sobra, já chegaram uns amigos e achámos que era uma boa
oportunidade de nos conhecermos.”
A mulher de
Manuel, que tinha ali chegado enquanto a conversa se desenrolava, não necessitou
mais explicações para concordar, sem que Manuel tivesse tempo nem oportunidade
de discordar.
O convívio
foi muito divertido e, como era de esperar, o peixe estava espetacular.
O vizinho
veraneante, para além de pescador, tinha experiência em grelhar peixe. Talvez
sejam duas experiências que andem de mão dada.
Os sargos
estavam em maioria, mas também havia salmonetes e um pargo pequeno que todos
provaram.
O peixe
grelhado sabia a mar e a carne branca saía em lascas firmes e suculentas.
Tudo isto
era muito interessante, mas não teria sido o suficiente para animar Manuel a ir
à pesca.
Porém, o seu
vizinho temporário convidou-o a que o acompanhasse por um par de horas no dia
seguinte, pois de manhã iria novamente à pesca.
E o vizinho
disse-lhe: “Pelas manhãs, até por volta das onze, costuma estar uma neblina
muito densa e fazer demasiado frio para se estar na praia. Como sempre acordo
cedo, aproveito o momento e vou à pesca para lá das rochas que vemos na praia. Com
o avançar da manhã, assim que vejo que o sol começa a despontar, agarro na
tralha, deixo tudo em casa e encontro-me com a minha mulher na praia.”
O plano
parecia bom, muito simples e Manuel podia concordar.
Nunca tinha
experimentado pescar e, se não gostasse, também não iria apanhar uma grande
seca porque não seria assim tanto tempo.
Hoje em dia
Manuel diz com carinho que a culpa do seu gosto e dedicação à pesca é culpa da
mulher que que aceitou ir jantar a casa desses vizinhos.
Foi pela
abundância de peixe na Costa Vicentina? Ou será que Manuel tem naturalmente
jeito para a coisa?
Não sei se a
resposta é importante, mas naquela manhã Manuel pescou meia dúzia de sargos
pequenos que foi o suficiente para ir comprar uma cana de pesca assim que
chegou a casa depois das férias.
Entretanto,
ainda de férias, foi mais um par de vezes à pesca com o tal vizinho.
Rapidamente
as férias chegaram ao fim e cada um regressou aos seus afazeres.
Em criança
Manuel costumava ir à praia com os pais.
Moravam no
Nadadouro, perto da Lagoa de Óbidos, e por isso iam à Foz do Arelho e ficavam
sempre na zona das barracas de praia, não muito longe da zona de terra onde
deixavam o carro.
Para a
praia, levavam o almoço que frequentemente era arroz de atum, mas também tinham
rissóis e, ao final da tarde, quando um manto de nevoeiro tomava conta da
praia, arrumavam a trouxa e voltavam para casa.
A zona das
barracas é virada para o lado da Lagoa, onde a água é mais quentinha, não há
ondas e é pouco profundo. Tudo o que é fundamental para se aglomeraram famílias
com miúdos.
Essas famílias
já se conheciam há muitos anos e as crianças, tal como os adultos,
entretinham-se entre si.
O pai de
Manuel gostava de caminhar na praia e, de vez em quando, arrastava Manuel para
um dos seus passeios sem que o moço tivesse oportunidade de dizer seja o que
fosse.
Certo é que Manuel
detestava sair de perto dos seus amigos e, ainda por cima, para ir andar.
A voltinha
era quase sempre a mesma e interminável aos olhos de Manuel.
Bordeavam a
Lagoa no sentido do mar.
Já na zona
de praia de mar, detinham-se a ver os pescadores que ali lançavam as longas
canas.
Junto à boca
da lagoa, onde esta se encontra com o mar, havia sempre quem ali tentasse a sua
sorte porque era zona que diziam dar muitos robalos.
Estes pescadores
tinham um ar misterioso. Enquanto Manuel e o pai passeavam-se de calções de
banho e t-shirts, estes homens estavam todos vestidos e com chapéus ou gorros.
As canas eram
grandes. Duplicavam os pescadores em altura.
Em direção
ao mar, estavam as linhas quase invisíveis que lá do alto iam esticadas até às
ondas onde mergulhavam até baterem no fundo de areia.
Manuel,
contra o sol, e ajudado pelo basso da água salgada, tentava em vão ver o brilho
das linhas, mas o seu olhar perdia-se no mar agitado.
De vez em
quando os pescadores recolhiam a linha e, no final do fio de nylon, só a
chumbada e o anzol vazio.
Então
seguia-se a única coisa que Manuel gostava mesmo neste passeio: ver alguém a
fazer um arremesso.
Com muito
cuidado, o pescador inspecionava o anzol e colocava mais isco se fosse
necessário.
Dava dois
passos para trás, enquanto também inclinava o tronco para dar mais balanço e,
com um movimento em velocidade crescente, projetava a cana em direção ao mar
atirando o anzol, que ajudado pelo peso da chumbada fazia o carreto zumbir e
largar linha com fartura.
Por vezes
não conseguiam a distância que queriam e voltavam a repetir a operação desde o
princípio.
Manuel
fincava os pés na areia para que o pai não o arrastasse pelo braço e pudesse
ver esse espetáculo.
Hoje em dia,
Manuel lembrava-se carinhosamente do pai enquanto se dedica à pesca e no quanto
o pai haveria de gostar estar ali com ele numa dessas pescarias.
Umas quantas
cervejas no cesto da merenda, umas sandes e o telemóvel com auriculares, para
além do equipamento necessário, é tudo quanto necessita e logo de madrugada lá
vai para algum dos seus spots favoritos.
Quando a
mulher engravidou, não havia na família quem não pensasse que nem pelo filho
Manuel iria parar em casa.
Mas não foi
assim. Manuel sempre cumpriu os seus deveres de pai.
Bom, nem
tanto ao mar nem tanto à terra.
Em abono da
verdade, temos que dizer que sempre tentou fazer as coisas de forma
equilibrada, mas esse equilíbrio parecia sempre pender muito para o lado da
pesca.
As
discussões com a mulher não eram raras e o motivo quase sempre o mesmo, a
pesca.
Mas, como
homem de família, nesses momentos de tensão, acarinhava a mulher e levava a
conversa para outro lado até que se dissipassem as nuvens domésticas.
Paulinho, o
filho do casal, cresceu consciente da importância da pesca e fantasiava com o
dia que iria pescar com o pai.
Mas não se
julgue que Manuel não dedicava tempo ao filho porque nada podia estar mais
longe da verdade, frequentemente os dois entretinham-se em demoradas
brincadeiras.
Paulinho ia
crescendo e aumentavam exponencialmente os compromissos sociais de
fim-de-semana a que Manuel se via obrigado a comparecer e que, de todo, não
queria faltar.
Eram os
aniversários dos colegas da escola, as festinhas de temas diversos, os
encontros e provas da ginástica, as peças de teatro e mais isto e aquilo.
Foi assim
que Manuel decidiu começar a pescar de madrugada, porque lhe permitia ter o
resto do dia livre.
Ver Paulinho
a crescer fez a felicidade de Manuel que, acima de tudo, lhe incutiu de forma
profunda, o imenso valor de ter uma família unida.
Também foi
por isso, e porque quando as famílias se querem bem as particularidades de cada
um parece ajustarem-se como se não houvesse outra possibilidade, que a pesca
aos domingos era sempre de madrugada. Dessa forma à hora do almoço Manuel
estava pronto e disponível para a sempre animada reunião familiar.
Paulinho foi
crescendo e, depois de várias canas de pesca de brincar, chegou o momento de
ter a sua própria cana a sério e acompanhar Manuel numa saída de pescaria.
Assim foi.
Era a primeira
pescaria como pai e filho, um daqueles momentos que podem ficar na sua memória
coletiva e tudo foi preparado com o maior cuidado.
O dia estava
fresco, mas com sol, perfeito para um pequeno passeio de carro, seguido de uma
pescaria.
Manuel sabia
que não podia ser nada de muito tempo, Paulinho, por muito entusiasmado que
estivesse, ia-se aborrecer se ali se demorassem.
Na cabeça de
Manuel, fariam uns quantos arremessos, tal como se lembrava de ver os
pescadores da Foz do Arelho fazerem quando era criança e quando apanhassem o
primeiro peixinho, talvez Paulinho se se entusiasmasse tanto como ele se
entusiasmou em Monte Clérigo.
Paulinho
acordou de madrugada e foi ao quarto dos pais perguntar se já eram horas de
irem à pesca. Manuel riu-se, levantou-se e foi preparar o pequeno-almoço.
A mulher de
Manuel teria finalmente uma manhã só para si e, sem outros planos, queria
dormir.
Quando
Manuel e Paulinho chegaram ao estacionamento da Praia da Vieira, as águas do
rio Lis diziam que estava maré alta, o que era perfeito para uma pescaria
curta.
Manuel levou
Paulinho pela mão até à ponta do molhe da praia norte.
O miúdo não
cabia em si de contente, abraçou as pernas do pai e disse-lhe que está muito
feliz por ali estar com ele. Manuel agradeceu a Deus não ser feito de manteiga
porque se assim fosse ficaria ali derretido.
Com todo o
cuidado, Manuel escolheu um local onde a pequena cana de Paulinho chegasse com
facilidade até à água, onde se viam peixinhos minúsculos que por ali se
passeavam.
Não tardou
para que Manuel sacasse o primeiro sarguinho para grande contentamento de pai e
filho.
“Paulinho,
já viste? Belo peixinho para o nosso jantar. Olha tão bonito”.
“Ohh pai, o
peixinho tem filhinhos? Deixou os filhinhos no mar?”.
Manuel
parou, tirou o sarguinho do anzol e suavemente colocou-o no balde com água do
mar que tinha previamente preparado.
Compreendendo
muito bem a pergunta do filho, percebeu o dilema que se apresentava à sua
frente.
Acocorou-se junto
do filho e, com muito amor e carinho, respondeu …
Diga-me, caro
ouvinte, leitor ou leitora, em sua opinião o que Manuel respondeu ao filho?
David Monteiro
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