Dependência



O aprendiz olhava intrigado para o Mestre enquanto este, pacientemente, atendia cada uma das muitas pessoas de uma longa fila.

Algumas caras eram-lhe conhecidas. Estavam lá o Sr. António, o Sr. Bernardes e o Sr. Alvides dos laranjais, a D. Amélia das hortas da charneca, os Fonseca que têm aquelas terras ao lado do mosteiro e outros de quem não se lembrava o nome.


De vez em quando, um dos monges trazia uma vasilha de barro e enchia o copo do Mestre com água fresca, ele agradecia com um sorriso e continuava com o que estava a fazer.

Havia quem esperasse horas até ser atendido.

O aprendiz ia às suas tarefas e, de vez em quando, voltava e, com ar de tédio, ficava a olhar a fila de gente.

Notava que algumas pessoas já estavam mais à frente, mas a fila mantinha-se igualmente grande porque, entretanto, tinham chegado mais aldeões aumentando o comprimento da fila.

Cada um que era atendido deixava algo. Alguns deixavam umas moedas, havia quem deixasse galinhas ou ovos, couves, vinho ou os que nada mais deixavam que lágrimas e lamentos.

A cada aldeão, o Mestre oferecia a sua imensa paciência, sorrisos e um abraço.

O aprendiz sabia que as rendas dos terrenos, das oficinas ou dos lugares no mercado, eram entregues ao irmão Abel que as recebia pela porta norte, uma entrada que, estando abrigada do vento norte, também não permitia que os rendeiros estivessem expostos aos olhares indiscretos.

Então que fazem aqui estas pessoas?

Estava o aprendiz perdido nos seus pensamentos, quando o irmão Abel, fazendo uma pausa, passou por ali e viu o aprendiz fixado na fila de gente e então explicou-lhe “são as pessoas que não conseguiram pagar a renda … as pessoas boas bons fazem questão de vir falar com o Mestre e explicar os seus motivos, cada um traz-lhe uma lembrança … o que puder …”.

Sem que o aprendiz tivesse tempo de fazer uma das suas mil perguntas, o irmão Abel seguiu o seu caminho em direção à porta norte.

De vez em quando, alguém saía da fila, ia à privada aliviar-se e voltava. Era o único acontecimento na lenta fila que durou toda a manhã.

Chegada a hora do almoço, o Mestre levantou-se, dirigiu-se até perto das primeiras pessoas da fila e convidou todos a irem à zona da cozinha para recolherem algo para almoçar. Também ele ia almoçar, mas com os irmãos, e regressaria mais tarde.

Finalmente eram horas de almoço e o aprendiz morria de fome desde que tinha acabado de tomar o pequeno-almoço. Lembrava-se das palavras que ouvia frequentemente, “barriga de moço não tem osso”.

Começou a correr em direção do Refeitório, mas deteve-se um pouco antes de lá chegar, sabia que levaria um olhar reprovador dos irmãos se lá chegasse a toda a brida … mais uma vez.

Também havia fila para entrar no Refeitório, mas esta o aprendiz conhecia muito bem e achava-a muito engraçada.

Para entrar na sala da refeição, os monges tinham que passar por uma porta alta, mas muito estreita, chamavam-lhe a Porta Pega Gordo.

A dificuldade em passar pela porta alertava o irmão em causa que tinha que ter cuidado com o quanto andava a comer porque estaria a ficar anafado e, por isso, era-lhe diminuída a porção durante uma semana até que voltasse a conseguir passar na porta.

O aprendiz divertia-se muito com o resmungar triste dos irmãos mais rechonchudos que provocavam sorrisos solidários dos mais delgados.

Ao final da refeição, e antes de retomar as tarefas da tarde, o aprendiz sentou-se junto do Mestre durante o seu tempo de descanso.

“Mestre, aquelas pessoas que estava a atender são as que não conseguem pagar a renda?”

“Sim” disse o Mestre “bons trabalhadores, mas que só conseguirão pagar mais tarde”.

“Mas Mestre, alguns não conseguirão pagar tão depressa. Sei que os laranjais estão com bicho. Só daqui a muito tempo irão conseguir resolver o problema”.

O aprendiz, genuinamente preocupado, olhava para o Mestre enquanto este se encostava à tília do claustro observando as folhas que já tinham perdido um pouco da sua profundidade de verde. Essas folhas seriam as que dariam uma excelente infusão.

“Infelizmente é assim mesmo. Os laranjais estão a passar um mau bocado e levará tempo a resolver. Temos que ajudar essa gente”.

O Mestre falava sem desviar o olhar que parecia ter identificado as melhores folhas para colher.

Começava-se a formar um enigma na cabeça do aprendiz que continuou no seu raciocínio, “mas então, cada pessoa desta longa fila tem um problema e não consegue pagar, quer então dizer que o mosteiro também não consegue receber e então todos temos problemas”.

O Mestre olhou para o aprendiz e sorriu.

“Parece que o teu tempo aqui tem sido útil, estás a começar a pensar. Tens toda a razão.”

O Mestre levantou-se e alargou o bolso do seu hábito, preparando-se para colher as folhas mais bonitas perante o seu olhar.

“Então Mestre? Isso não o preocupa?”. O aprendiz levantou-se e encolhendo os ombros, continuou a questionar o Mestre no seu misto de dúvida e indignação.

“Eu não compreendo. As terras são do mosteiro, temos aqui uma centena de irmãos que, para além de rezar, ensinam técnicas diversas aos rendeiros e a alguns artífices, mas estamos dependentes das rendas?”

O Mestre parou de apanhar as folhas, chamou um irmão que passava no claustro e pediu que servissem algo adicional às pessoas da fila e que lhes pedissem desculpa pela sua demora, mas não tardaria em voltar.

“O teu raciocínio tem lógica, podíamos ser autossuficientes. Temos as terras, temos o conhecimento e temos a mão de obra”.

O aprendiz não podia estar mais contente. Teria descoberto algo que o Mestre ainda não se tinha dado conta?

“Mas teríamos o amor da população?” continuou o Mestre que agarrou nas mãos do aprendiz e disse “o amor é tudo”.

Sem se deter perante o olhar esbugalhado do aprendiz continuou “o Senhor ensina-nos que o pecado é a falta de amor e sem amor não conseguimos viver” disse-lhe o Mestre serenamente.

O aprendiz já sabia que quando o Mestre começava a falar desta maneira vinha daí sermão.

O Mestre, que já tinha dado muitas voltas ao sol, conhecia este olhar deste aprendiz que era o mesmo olhar de muitos outros aprendizes fizeram depois de lhe terem interrogado exatamente sobre o mesmo assunto e da mesma forma.

Era um excelente sinal de crescimento saudável do aprendiz e uma valiosa oportunidade de aprendizagem.

“Se nos isolarmos por sermos, supostamente, autossuficientes, será só uma forma de darmos início à contagem do tempo até encontrarmos qual o ponto da nossa vulnerabilidade, como por exemplo algum fogo ou alguma catástrofe no mosteiro.”

À medida que o Mestre falava ia gesticulando como que ilustrando o seu discurso.

“Então aí, fustigados pelo fogo ou debilitados pela catástrofe, iríamos desejar que tivéssemos as terras arrendadas e, nos momentos difíceis, tivéssemos tido compaixão de quem nas horas más teve dificuldades, ou seja, nessa altura gostaríamos de estar dependentes daqueles que nessa altura nos poderiam e iriam ajudar.

Também podemos ver as coisas por outro lado. Ao disponibilizarmos as terras com rendas justas para que sejam trabalhadas por outros, permitimos que essas famílias prosperem e com isso, contribuímos para que se afastem da pobreza. Quanto melhor os rendeiros viverem, tanto melhor estaremos todos.

Nenhum de nós pode, de modo algum, ser autossuficiente, somos sempre dependentes do que nos rodeia, mas podemos escolher a nossa dependência. Estás dependente de nós neste momento e o futuro do mosteiro estará depende de ti. O Sr. Alvides depende do laranjal que lhe dá as laranjas que come e que vende, mas o laranjal depende do Sr. Alvides para que ele encontre a cura para a enfermidade que aflige as laranjas.”

O Mestre levantou-se, estava na hora de voltar para a sua tarefa, mas queria assegurar-se que o aprendiz estava satisfeito na sua curiosidade.

Porém, pelo olhar do rapaz o Mestre identificou que aí vinha mais uma pergunta.

“Mestre, mas não acha humilhante que quem não pode pagar seja visto por todos? É que, ninguém consegue ver os que conseguem pagar.”

Era desta que o aprendiz perguntava algo ao Mestre que o deixava sem resposta?

“Caro aprendiz, não podemos privar, a quem não consegue pagar, da sua mostra pública de dignidade e não podemos pôr em risco a segurança de quem tem meios de pagar.

Ou seja, quem pode pagar, se o fizer à vista de todos, habilita-se a que a sua casa seja identificada por amigos do alheio. Por outro lado, das maiores dificuldades que alguém honesto enfrenta, quando não tem dinheiro para pagar as suas obrigações, é dizer que não consegue pagar a quem deve e, fazendo-o à vista de todos, estamos a dizer a toda a comunidade, aqui está uma pessoa de bem”.

“Mas Mestre, quem tem dinheiro faz casas maiores e mais espampanantes, não sei se necessitam de proteção. Há também os que devem e não vêm cá”.

Já a caminho da continuidade da sua tarefa, o Mestre continuou a falar, mas já sem se voltar, fazia-o com um leve sorriso que a idade nos dá sobre conhecimento das pessoas.

“Caro aprendiz, o irmão Frederico ensina o ofício de sapateiro com todo o amor e conhecimento que tem, e que é bastante. Se os aprendizes irão mais tarde fazer bons sapatos ou usar peles de pior qualidade já não é de sua responsabilidade. Porém, cada vez que o irmão Frederico vai ao mercado dá um abraço ao sapateiro menos sério e mostra-lhe onde ele pode comprar peles melhores. Mas a escolha é, e sempre será, do sapateiro”.

Mensagens populares