Se eu fosse um flamingo



Pergunto-me como será ver o mundo pelos olhos de um flamingo.

Porquê um flamingo? Ora, porque os observo enquanto se alimentam na Lagoa.


Penso que devem ser um grande bando que está repartido em grupos menos numerosos e que cada um desses grupos ocupa um espaço do espelho de água.

Os seus joelhos captam a minha atenção. São saliências que se destacam nas suas longas pernas delgadas que estão um pouco acima da superfície e que é sinal da pouca profundidade da Lagoa nessas zonas.

Tento aproximar-me, mas o grupo de elementos que eu estava a observar, vai compensando a distância afastando-se um pouco mais para o centro da Lagoa. Quanto mais se afastam mais anulam a proximidade que eu vinha ganhando.

Eu sei. Eu sei que poderia manter-me por ali até que a minha presença começasse a ser mais tolerada e, dessa forma talvez os conseguisse fotografar de mais perto, mas opto por respeitar o seu sossego.

Os rosinhas de pescoço comprido e bico curvo, continuam a sua tarefa de mariscarem o mais que puderem. Aproveitam os últimos dias de calor e bom tempo.

Querem estar fortes e gordos para enfrentarem o voo até ao norte de África, onde passarão o inverno.

Enquanto isso, o mundo dos humanos parece ter enlouquecido mais uma vez. Há restrições de deslocação, há imposição de uso de máscaras, há o diz que aconteceu ou pode acontecer e tanto mais ainda.

Mas, no mundo dos flamingos, o que verdadeiramente interessa centra-se no essencial, prepararem-se para a longa travessia.

Passados uns dias volto à Lagoa para visitar a colónia.

O bando estava agitado. Quando antes só comiam, agora parece que implicam uns com os outros resultando em haver sempre pequenos grupos a voar sobre a Lagoa.

Vejo alguns elementos que levantam voo no Braço da Barrosa e dirigirem-se para os lados da Aldeia dos Pescadores. Lá vão engrossar outro grupo que ali se alimentava.

Talvez ali haja mais alimento, não consigo saber, mas vejo que incomodam os que já lá estavam.

Com a presença dos novos elementos, todos ficam inquietos e não tarda nada para que seja a vez de outro conjunto de elementos levantar voo e o jogo parece ter voltado ao início.

Lá do alto no seu voo, os flamingos veem as margens da Lagoa limitadas por arvoredo diverso. São muitos os eucaliptos, mas também há pinheiros e árvores que não as identifico mas que nesta altura despem-se da folhagem outonal.

Se olharem para oeste, para lá os lados do areal da praia, verão que o mar está endiabrado.

Mais uns dias passam no calendário sem outra surpresa para além de os dias irem ficando mais invernais.

A chuva e o vento passam de exceção a norma e, na praia, a ondulação já não faz travessuras de adolescente. O mar começa a ter a força de um adulto e, para fotografar já necessito luvas.

Se eu fosse um flamingo, não gostaria deste tempo.

Vejo que o bando já voa mais unido e parecem estar a dizer adeus à Lagoa.

Enquanto os flamingos cumprem os seus rituais, no mundo dos humanos, nada parece voltar ao que antes era. Fala-se de um “novo normal” como se isso fosse desejável.

Qualquer uma destas razias que o bando vai fazendo à Lagoa, pode ser a última desta temporada e aproveito para lhes dizer adeus com a satisfação de assistir a algo normal.

Se eu fosse um flamingo também iria com eles. Não sendo, resta-me ficar a usufruir da doce dor da saudade de os ver na Lagoa.

David Monteiro

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