Vitor Dalmau




Dizem que os olhos são portas para a alma e que através deles saltamos as barreiras que nos levam às verdades do coração. Vitor não pensava nestas coisas, vivia o dia-a-dia.

Quando tocou à porta do segundo andar da Rua Nova da Alfândega, sentia o cheiro a tintas novas que vinha das paredes das escadas onde estava. No moderno elevador minúsculo só cabiam duas pessoas e não percebia porque razão haveria um elevador de falar … modernices do século XXI.

Não demoraram a abrir a porta, estava combinado para as duas da tarde e Vitó, a contrastar com outros colegas de profissão, era sempre pontual.

Quem lhe abriu a porta devia ser a mesma pessoa que lhe havia ligado de manhã, uma moça nova. Bem, aos setenta e três anos, todas as mulheres de quarenta anos lhe pareciam novas.

À contraluz Vitor não conseguia ver bem a cara da mulher, além do mais os seus olhos já necessitam de tempo para se ajustarem a grandes mudanças de claridade, mas houve algo estranho no silêncio que se impôs, por momentos ela não respirou.

O olhar da jovem mulher penetrou nos olhos de Vitor como um picador de gelo e uma dor aguda invadiu-lhe o coração com todo o peso do mundo.

Vitor não era um homem dado a esoterismos, era um livro aberto, todos o diziam quando se envolvia em animadas tainadas no Tasco da Viúva, lá para o Cais das Pedras. Cantava à desgarrada o que lhe ia na alma, sem que fosse necessário muito vinho.

Cantava as peripécias do dia-a-dia ou alguma graçola aos gajos do SLB como manda o figurino do FCP.
Talvez nem fosse necessário vinho nenhum, mas os amigos diziam que essa experiência científica de “sem vinho nenhum” não se podia fazer por falta de acontecer, e todos se riam. Sabiam que, mesmo não sendo bem assim, a piada era sempre bem sucedida.

Era conhecido em todos os restaurantes, cafés e lojas da Ribeira do Porto como Vitó, o homem dos arranjos. Nos seus 73 anos, já levava uns vinte a fazer biscates nesta zona.

Canalização, eletricidade, pinturas e afins era com ele. Foi um ofício que aprendeu na tropa mas que era um tempo do qual não gostava de falar, até o fazia parar de cantar.

Ninguém sabe o lhe sucedeu por lá. Por aqui não há mais quem tenha servido no Grupo de Cavalaria nº 1 em Angola e nos possa dar dicas sobre o que lá se passou, mas sabemos que foi uma unidade muito ativa lá no Ultramar, como se diz por estas bandas.

Os amigos de infância de Vitor, dizem que mandaram para lá um rapazola e de lá voltou alguém que teve que voltar a aprender a ser pessoa.

Em finais de 68, o Edital dizia: Vitor Dalmau, Soldado, Grupo de Cavalaria nº 1, Serra do Pilar, Vila Nova de Gaia. Tinha passado na Inspecção, não se esperava outra coisa, com os seus 1,73m de altura, apesar de franzino, não o era mais que os outros rapazes da Ribeira que já tinham assentado praça.

Alguns meses passados e, nos finais da Primavera de 69, com 21 anos, Vitor embarcou para Angola na Gare Marítima de Alcântara, em Lisboa. Nessa altura já tinha deitado mais corpo, fez-lhe bem a recruta, havia mais chicha debaixo daquele camuflado.

"Aprendi a profissão, valha-me isso" costuma dizer para terminar estas conversas que o incomodam profundamente. 

Pena que não haja quem lhe diga que não foi bem assim, mas talvez isso não interesse para nada.

Vitor fez em Angola uma comissão de dois anos e ao regressar, seco, de cara cavada e olhar de parco brilho, teve conhecimento que o seu pai havia falecido há uns meses. O Sr. António sofria de angina de peito e reumatismo que se diz terem sido consequências das muitas campanhas do bacalhau em que participou com os armadores da Gafanha da Nazaré, ainda Vitor era uma criança já para rapazote.

A mãe, Adélia Dalmau, mulher dura de coração doce, corpulenta de peito cheio, vendia peixe no Bolhão. Foi assim que conseguiu sustentar a família quando António se reformou com uma mísera pensão e agora que Vitó regressou do Ultramar sem dinheiro e sem trabalho.

Longos foram os meses em que Vitor andou por ali a polir esquinas da Rua Nova da Alfândega e a chegar a casa a tresandar a vinho.

Trabalhar, está quieto. Se havia trabalho Vitor não o encontrava ou talvez se esforçasse por fugir dele.

Nesta altura já parava muito pelos lados do Tasco da Viúva. Bem, o estabelecimento ainda não tinha esse nome porque o marido da dona ainda estava muito bem de saúde.

Os amigos que tinha agora eram os mesmos de antes de embarcar, mas pouco paravam pelo Tasco da Viúva.

A maioria tinham casado nos dois anos que Vitor esteve fora. Se passavam pelo Tasco era no caminho do trabalho para casa, mas só se demoravam o tempo de emborcar um fino que as Marias lhes faziam a vida negra se se demorassem.

Com os poucos que por ali ficavam mais tempo, falava-se de futebol. Vitor ouvia, era de poucas falas.

Não era o único que ficava com um ar mais grave quando alguém começava com aquelas conversas do género “isto tem que mudar”, “um gajo não pode falar” ou “temos que tirar os nossos rapazes de África”.

Eram temas proibidos e, não obstante o interesse geral, havia sempre quem terminava a conversa não fosse a coisa acabar mal, não fosse alguém ir-se chibar … e mais não digo.

Os sábados não eram diferentes dos dias de semana, mas no final de uma dessas manhãs em particular pode ter sido o ponto de viragem da sua vida.

Um senhor com idade para ser seu pai, muito bem posto, apesar da forma descontraída de vestir, aproxima-se do grupo que parava ali no Cais das Pedras e perguntou se estava alguém interessado em ajudar na mudança a descarregar o camião e acarretar móveis, “não pago mal”, disse o homem.

Sem razão aparente mas de forma segura, o homem olhou para Vitor quando terminou a frase e Vitor só conseguiu dizer um tímido “tá bem” a que recebeu um “embora lá” como resposta pronta.

Em conversa de fim de almoço arranjado pela mulher que, logo pela manhã, tinha ido ao Bolhão comprar as sardinhas que agora comiam, o homem perguntou aos seus ajudantes o que faziam na vida e a conversa fluiu.

No final do dia, o homem aproximou-se de Vitor com o dinheiro para lhe pagar a jornada e dizendo-lhe que era encarregado numa obra ali perto acrescentou “És um gajo com genica e bom corpo, não tens vergonha de andar sem fazer nada? Na segunda-feira aparece lá na obra que me faltam serventes.”

A conversa apanhou Vitor completamente desprevenido e, apesar da voz firme do homem, havia amizade e boa intenção sem esmolas nem favores e, mais uma vez, saiu-lhe um “tá bem”.

Se há momentos que nos atingiam em particular, outros há que mudam a vida de um país. O 25 de Abril de 1974 enquadra-se nessa categoria.

Quando a Revolução dos Cravos aconteceu, Vitor participou na euforia coletiva. 

Saiu para a rua, gritou “Viva o FMA” em manifestações e embebedou-se com pessoas que não conhecia de lado nenhum, até com mulheres. Foi, para quem o conhecia, uma surpresa tão grande como a revolução em si.

A guerra em África terminara, mas dentro dele ainda dormia uma vil criatura que a revolução não expulsara.

Fecharam a obra uns quantos dias até passar a confusão mas logo a retomaram porque a vida não pode parar.

Era um trabalhador cumpridor e com bom corpo, apesar de, a seguir ao almoço, não ser boa ideia confiar-lhe tarefas de grande responsabilidade. No entanto, entre os demais, não era caso único ou a situação não era motivo de reparo.

Ao final dos dias de trabalho o ponto de encontro continuava o mesmo de sempre, o vinho era o mesmo e os companheiros não eram diferentes. Vitor não tinha nenhuma Maria que lhe fizesse a vida negra e demorava-se pelo tasco até serem horas de jantar.

As conversas, essas mudaram, agora a política era tema recorrente. Falava-se de nomes que nada diziam a Vitor, Vasco Gonçalves, Mários Soares, …, mas as pilhas do seu rádio haviam terminado a meio da tarde e não tinha notícias da nova contratação do FCP.

Bebia o pouco que ganhava e para casa levava umas batatas de vez em quando.

Adélia não dizia nada. O Senhor de Matosinhos havia de endireitar o Vitor quando fosse hora.

Passaram os tempos do PREC e o ano de 1976 foi de retomar alguma estabilidade. Havia obras novas e Vitor consegue voltar a arranjar trabalho depois de um tempo parado por se ter desentendido com o antigo patrão.

Num certo final de mês, Vitor acompanhou um dos colegas de trabalho à sua despedida de solteiro que os amigos tinham organizado no Pérola Negra, um dos famosos bares de alterne da noite Portuense.

Nunca tinha estado num espaço desses mas putas eram putas em qualquer lado, não havia de ser diferente do que já conhecia.

Os assentos vermelhos acolchoados formavam cadeirões de dois lugares que ficavam de frente um para o outro, separados por uma mesa. A bola de espelhos cativou a sua atenção, nunca tinha visto nada disso e aquele perfume doce e intenso que lhe lembrava as mulheres da rua que conhecia, não disfarçava o cheiro de milhares de cigarros que já ali se haviam de ter fumado.

O barulhento grupo de mancebos ocupou três mesas deixando espaço para a companhia feminina que ali procuravam e que não se fez esperar.

De entre as moças que se sentaram com o grupo, Vitor imediatamente reconheceu a Favolas que tinha andado com ele na Escola Primária da Bandeirinha, lá para os lados da Ribeira.

Apesar de os dois serem de aulas diferentes, já que rapazes e raparigas não estavam na mesma sala, partilhavam o mesmo tempo de recreio onde a Favolas ganhara a sua alcunha por causa dos dois grandes dentes da frente que mal cabiam dentro da boca.

Não se conteve, nem pensou, só gritou “Favolas”, como se ainda estivessem no pátio da escola. Foi como uma ligação direta à meninice furando as barreiras dos bloqueantes tempos de Angola.

A reação da moça não podia ter sido pior nem mais espontânea e de imediato soltou meia dúzia de impropérios que resultaram em gargalhada geral. Estava a barraca montada, a noite ia ser de arromba.

O amigo nunca tinha visto o Vitor com nenhuma mulher e não lhe sabia namorada. Frequentemente dizia-lhe “Com esse feitio de merda, não há mulher que te ature.”

Vitor não devia nada à doçura. De poucas palavras e testa franzida, não sorria facilmente mas, para além das zangas com os encarregados de obra e alguns mestres, também não era homem de se envolver em muitos bate boca.

De qualquer das maneiras, o contexto masculino em que trabalhava e que não primava pela delicadeza, de alguma forma abafava o seu feitio bruto e contidamente intempestivo.

Deixassem-no estar no seu canto que ele também não meteria com ninguém.

Havia dias melhores que outros. Nos muitos dias em que dormia mal, Vitor ficava ainda mais irascível e de pavio curto.

Desde o regresso do Ultramar, Vitor tinha pesadelos frequentemente, acordando a meio da noite todo suado e atirando-se para o chão em busca de proteção dos terrores que já só existiam na sua cabeça.

Não se pense que o álcool o fizesse dormir mais profundamente porque nada podia estar mais longe da verdade. Os pesadelos aconteciam na mesma, só não se conseguia entender nada quando falava a dormir.

Os problemas no trabalho eram previsíveis, não ficava num emprego muito tempo pois acabavam todos em cenas de pugilato com os tais encarregados de obra que, na sua opinião, nunca tinham razão e estavam a pedir o par de chapadas que recebiam.

Passado algum tempo após o extraordinário encontro no Pérola Negra, Favolas visitou Adélia no Mercado do Bolhão. 

Entre o som dos pregões e o agradável cheiro das hortaliças, não foi necessário muito tempo para que as duas entendessem que a presença da moça ali nada tinha a ver com peixe. Nesse momento começaram uma relação amena e cada vez menos espaçada em encontros.

Favolas, ou melhor, Cristina, foi saindo cada vez mais regularmente com Vitor e, de forma compassada, as suas vidas foram-se aproximando.

Iam ver as montras, entravam em algumas lojas e Cristina nunca parava de falar e, sem que Vitor a interrompesse, ia acenando com a cabeça.

Cristina tinha a mania de agarrar as mãos de Vitor e passá-las nos tecidos do Marques Soares. Sonhava com as sedas e os brocados, havia de ter sido modista mas não deu para isso.

Ela não compreendia a fixação que ele tinha por ferramentas. Vitor agarrava os martelos como que a pesa-los e parecia testar a dureza dos alicates ao que Cristina perguntava-lhe se não tinha as ferramentas que necessitava lá na obra.

Vitor limitava-se a olhá-la sem entender o que ela queria dizer.

De Vitor nunca houve uma palavra sobre o passado de Cristina e, se alguma coisa pensava, em palavras nunca o expressou.

Cristina era muito selectiva nas pensões em que ía com Vitor, a alguma só dizia um não firme e redondo.

A Junta de Freguesia costumava organizar excursões a cada três meses e desta vez irão assistir à Procissão das Velas, a 12 de Maio, em Fátima.

Era um sonho sempre adiado que Adélia acalentava, sem que fosse nenhum segredo. Finalmente podia deixar a banca ao cuidado de alguém e dar-se a esse luxo, pelo que inscreveu-se depois de falar com a futura nora.

Ao regressar Adélia sorriu ao entrar no quarto. Há coisas que se sabem sem nunca se terem aprendido e aquela cama desviada um centímetro de onde estava há muitos anos, tinha o seu significado.

Empurra a cama para o seu sítio de sempre, olhou para a fotografia de António que ali estava na cómoda e, com a voz trémula, diz-lhe “havias de gostar dela, é mulher para o endireitar”. 

Não haja dúvida que qualquer início de namoro é fantástico. Como se costuma dizer, faz muito bem à pele.

Ao final de cada mês, Vitor começou a juntar mais produtos da mercearia às batatas que levava. Muitas coisas não tinham qualquer utilidade e Adélia sorria e guardava tudo que o Sr. Manuel lá do lugar haveria de trocar.

Um dia Adélia chamou a Cristina para tomar um café na leitaria do mercado e mandou o Vitor passear que nada tinha que estar ali a ouvir conversas de mulheres.

Os avios do mês passaram a ser mais úteis e regulares. 

Cristina também aceitou a sugestão de Adélia e começou a ajudá-la na banca do peixe. Apesar dos seus braços que nem troncos, as caixas já se faziam pesadas para Adélia e Cristina estava jovem, entusiasmada e agradava-lhe a oportunidade de mudar de vida.

O tempo passou sem novidades de registo mas com a sequência natural da maior parte das vidas. Entre casa, o trabalho, o namoro, a vida familiar e os jogos do FCP ao fim-de-semana, Vitor não pensava no passado ou futuro.

A páginas tantas, no pequeno segundo andar da Rua Nova da Alfândega foi necessário substituir a cama de solteiro por uma cama de casal para acolher Cristina cuja barriga empinada já se fazia notar.

De uma das casas que vagaram ali perto, conseguiram comprar a cama de casal com colchão por muito bom preço que, apesar de já muito marcado e a necessitar de ser arejado, haveria de servir.

Foi o primeiro Natal que passaram todos juntos.

Há muitos anos que não se via tanta comida naquela casa, será que iam ter visitas e ele não sabia de nada? Parece que não, mas Adélia e Cristina não paravam de cozinhar.

Ao subir as escadas para aquele segundo andar da Rua Nova da Alfândega, já não eram só os degraus de madeira que rangiam acusando os anos do prédio com falta de manutenção, também se ouvia a constante tagarelice das duas mulheres.

No dia 25, enquanto almoçavam Roupa Velha, à moda da família de Cristina que era da zona de Marco de Canavezes, Vitor viu a mãe de olhos vidrados a contemplá-lo e a Cristina que já se sentava de pernas abertas e braços estendidos para agarrar dos talheres da mesa.

Não disse nada, mas sabia que Adélia que só chorava ao ver a procissão de Fátima que o Canal 1 da RTP transmitia na noite do 12 de Maio, se tivesse algo para dizer seguramente não ficaria calada.

Mas a novidade da relação, como tudo na vida, foi sol de pouca dura e a normalidade em breve se instalaria. Vitor não pararia de beber, há muito que o vinho era o seu mais fiel amigo a quem amiúde visitava.

Por mais de um par de vezes, as brigas de casal acabaram com Vitor a marcar a pele de Cristina com hematomas hediondos e, não fosse Adélia ser mulher ainda de muita força, não sabemos que rumo poderia ter tomado a história.

“São os nervos” dizia-se, e no dia seguinte a vida continuava. Havia que levar a vida para a frente, um dia de cada vez.

Mas a ternura também tinha o seu espaço e, por muito desajeitadas que fossem as evidências, eram frequentes.

Cristina que já se habituara ao cheiro e sabor do vinho que fazia parte do seu quotidiano, tinha a alegria de se gabar que não havia ocasião social que não estivessem juntos e que há muito que Vitor não aparecia em casa com memórias daquele perfume doce e intenso de onde a Favolas foi reencontrada.

Em meados de Fevereiro, Maria nasceu franzina e ruidosa.

Consta-se que Vitor passou mais de seis meses sem vinho e o crescente amor por esta menina era-lhe tão inesperado como o sua automática aceitação lhe foi desconcertante.

De vez em quando, Cristina encontrava Vitor a passar as suas mãos calejadas do cimento e reboco, ao de leve pela pele da menina com um cuidado de relojoeiro que lhe era inédito.

Seis meses, deve ser esse o prazo da novidade e Cristina vê a sua normalidade a aproximar-se como que em excesso de velocidade. Revive momentos de medo por causa da ira de Vitor.

As situações aconteciam e, depois da gritaria, Vitor saía de casa, levava consigo a sua raiva mas também muita angústia e desespero. Consumia-se por dentro sem saber como lidar com a revolta.

Nessas noites preferia passá-las em claro, a vaguear pelas ruas da cidade que deitar-se na sua cama comprada com muito esforço e ter a visita programada dos seus terrores.

Adélia já tinha visto muitas coisas na vida. Nos seus tempos de moça, assistiu a cenas feias entre casais.

Não diretamente com ela, felizmente, que o António que Deus tenha era uma jóia. Tinha suas coisas, é certo, mas ainda assim era bom homem.

Alguns dos colegas de António que também andaram na campanha do bacalhau, vinham de lá completamente transtornados.

Aquilo era como ir à guerra, às vezes até pior, pois há relatos de quem tenha ido para Angola e nunca tenha disparado um tiro.

No tempo da campanha do bacalhau, os rapazes pescadores eram obrigados a alistarem-se. Até dava isenção de irem à guerra se fizessem duas campanhas seguidas.

Que raio de coisa haveria o Salazar de ter lembrado. Dizem que não foi ele mas sim um tal de Tenreiro … não interessa, tudo farinha do mesmo saco.

Os meses sem fim que passavam no mar, com fracas condições de higiene, alimentação monótona e sempre com a pressão de se meterem nos pequenos dóris durante horas a fio, era devastador.

Os homens chegavam a ficar vinte e quatro horas num dóri se ficassem à deriva no nevoeiro, sem saberem se viriam a ser recolhidos ou se por ali morreriam de sede perdidos nos mares da Terra Nova.

Quando voltavam ao navio mãe, descansavam oitos horas e toca de regressar aos pequenos dóris. Era brutal.

Passados muitos meses de campanha, como poderiam ficar se não transtornados?

As famílias sentiam a falta do homem que partia para a campanha e acabavam por sofrer com o homem que regressava com o bacalhau.

O tempo passava e Vitor seguia apaixonado pela sua Maria, agora com quatro anos, lingrinhas e rebitesa que fazia dele o que queria, tal como diziam as mulheres da casa.

Num dia como tantos outros, Adélia e Cristina foram regatear o peixe à Lota de Matosinhos. Adélia queixou-se tanto da indisposição que a atormentava há meses que Cristina refilou.

“Ó mulher, vá para casa que já não a posso ouvir. Deixe que eu trato disto. Um dia não são dias.”

Estavam de regresso ao Bolhão, quando Adélia desfalece após valentes cólicas e um profundo “Ai Jesus”.

Quando acorda, já numa cama da Urgência do Hospital de São João, e após lhe ser dado um chá e torradas, Adélia teve uma longa conversa com o médico que tinha idade para ser seu filho tardio.

O diagnóstico é cruel, um cancro no cólon em estado muito avançado não deixa dúvidas no prognóstico. Adélia é logo internada.

Entre lágrimas e palavrões, pede que liguem para o Mercado e que mandem chamar Cristina.

Não tem forma de falar com Vitor, nem sequer sabe onde é a obra ou qual o número do telefone do estaleiro. Bem vistas as coisas, é melhor deixá-lo estar, não viria cá fazer nada.

Ao final da tarde, Cristina visita a futura sogra no hospital e as duas mulheres têm uma longa conversa. De muito falaram ao que não faltou o casamento em condições que ainda só estava nos sonhos da futura noiva.

Falaram, choraram e abraçavam-se quando Vitor irrompe pelo quarto que partilhava com mais três senhoras que Adélia ainda desconhecia.

Entre um misto de terror e raiva, Vitor não compreende o que se passa. O seu estado de espírito não lhe permite a calma para assimilar toda a informação.

Tinha chegado a casa vindo da obra, as vizinhas deram-lhe conta do sucedido, correu ruas acima até ao hospital e só parou no Marquês para beber água que detestava mas que o corpo pedia.

Chegou ao hospital suado como nas noites infernais, olhou para a mãe e para a mulher que tentavam explicar-lhe o que se passava mas as palavras não faziam sentido.

Saiu do quarto e no corredor encontrou uma mulher de farda azul, com ar inexpressivo que o olhou por cima dos óculos.

A sua tentativa de descarregar a raiva sobre as enfermeiras é automaticamente frustrada. São mulheres habituadas a lidar com estas situações, como costumam dizer: “são muitos anos a virar frangos”.

A mulher encaminhou Vitor para uma sala onde o deixou um pouco à espera e, mais tarde, já mais calmo, teve oportunidade de falar com o médico e saber o que se passava. Tal como na guerra, sentia que a sua vida corria por linhas que não dominava.

Passados dois meses no hospital, só o olhar ainda era o de Adélia porque do seu corpo de mulher possante e peito abundante já só restavam as peles que muito lhe sobram.

A morfina começava a não ter efeito, era o princípio do fim que entre sentimentos contraditórios se desejava breve. São  dúvidas inevitáveis, cenários de sofrimento que no nosso quotidiano preferimos não lembrar ou fingir não conseguir equacionar.

Quando o Verão se aproxima, os nevoeiros são frequentes na zona da Foz do Douro. Num momento mal se vê o mar para no momento seguinte se ver claramente a Afurada e os bancos de areia do Cabedelo.

Talvez a alma de Adélia tenha ido com o névoa ver o alto mar, de onde vêm os peixes que alimentaram toda a sua existência. Adélia partiu.

O funeral foi simples, igual a tantos outros.

Foi no Cemitério da Foz do Douro onde já lá descansava o marido da viúva.

Pela primeira vez, aos 32 anos, Vitor sentiu uma dor maior que os terrores que trouxe da guerra.

Cada vez que a pá se afundava na terra que seria lançada ao caixão, Vitor ouvia o estrondo das bazucas que se disparavam em ângulos mortais e, quando a terra finalmente embatia no seu destino fúnebre, sentia as ondas de choque dos disparos de canhão contra aqueles que lhe disseram serem seus inimigos.

Saiu de rompante. Cristina ainda o agarrou por um braço mas nele reconheceu no olhar e a raiva que já tantas vezes tinha visto e este deu-lhe um safanão áspero, libertou-se e foi embora.

Nunca tinha dito à sua mãe o quanto a amava e admirava e jamais o poderia fazer.

Neste momento nem o vinho parecia chamar-lhe. Só a dor o acompanhava.

Do cemitério, andou em direção ao mar sem parar até que sentiu os seus pés molhados pela água da Praia dos Ingleses, ali na Foz.

Por ali ficou a ver cair o dia. Confuso e sem esperança, estava só e sóbrio.

Caminhou até os sapatos secarem e neles os seus pés que não sentiam a areia da praia que por ali tinha ficado. Foi andando ao ao longo da Foz, passou o Castelo do Queijo e foi visitar a imagem do Senhor de Matosinhos por quem mãe tinha tanta devoção. 

Dizem que o santo é oco e lá dentro estão guardados os instrumentos da Paixão. Para Vitor não passam de ferramentas tais como as que usa.

Está de alma vazia, regressa ao longo do mar e senta-se de olhar distante.

Acordou gelado. A sua cara coberta com o salitre do mar fez-lhe pensar quantas vezes o pai devia ter tido essa sensação sozinho, horas a fio num dóri.

Foi andando da Foz à Alfandega. Ver a porta aberta do prédio aberta sempre o enervou, há muita bandidagem que se aproveita destes descuidos.

Subindo até ao segundo andar, encontra uma pequena camisola de Maria nas escadas. Não tem a certeza de tê-la visto ontem com isso vestido e depara-se com a porta da casa mal fechada.

“Ora bolas, então a Favolas deixou a porta de casa aberta?”

Nem sinais da mulher nem da filha. As poucas roupas da menina não estavam ali e as gavetas da cómoda onde a mulher guardava a roupa tinham sido despejadas.

Lembrou-se com a nitidez dos postais, das repetidas vezes que tinha que visitar as aldeias após os ataques. Ainda os corpos conservavam o calor da vida e ali já ninguém morava.

Na frente de combate não havia descanso, só repetição e no dia seguinte haveria novo alvo onde muitos dos seus companheiros ou ele próprio talvez, iriam perder a vida. Acontecesse o que acontecesse, no dia seguinte a guerra continuaria.

Percebeu que sem nunca ter sentido grandes dores, em dois dias, aos 32 anos podia ter todo o sofrimento que lhe havia sido reservado para uma vida inteira.

Não chorou nem qualquer gritou. Saiu à rua e não bebeu.

No dia seguinte foi trabalhar e ninguém estranhou, afinal ninguém sabia de nada.

Os seus amigos de copos nunca mais os viu, afinal de contas deixou de ir às tabernas onde ía.

Alugou um quarto não muito longe dali e entregou a velha casa ao senhorio que já os havia sondado para se irem embora que queria vender o prédio.

A Ribeira começou a ter cada vez mais turistas e antigas lojas deram lugar a novos estabelecimentos de pessoas que ele conhecida, gente dali mesmo.

Costumava ser uma zona escura, com restaurantes modestos onde se juntavam grupos de estudantes em grandes farras e jantaradas mas vai-se fazendo uma zona da moda.

Uma pintura aqui, um arranjo da canalização ali, o tempo foi passando e Vitor foi tendo cada vez mais pedidos.

Para desgosto do seu patrão, com quem estava há quase dez anos, despediu-se para se dedicar só aos biscates onde ganhava muito mais e, pensava ele, seria dono do seu tempo. Além do mais, já na casa dos cinquenta anos, era tempo de começar a amealhar para a reforma porque quem está sozinho não pode depender da caridade dos outros.

Não tinha mãos a medir e não conseguia controlar o seu tempo que era gerido pelos pedidos que vinham por telemóvel. 

Não entendia nada destas novas tecnologia mas um moço lá da última obra onde esteve, ajudou-lhe a comprar este pequeno aparelho de teclas luminosas que agora era o seu verdadeiro patrão. Só tem que se lembrar de o carregar a cada três dias mas há alturas que chega a passar cinco dias sem ir ao carregador.

Há vários anos alguém comprou o prédio onde era o Tasco da Viúva. Fizeram obras mas mantiveram o Tasco com a antiga dona de quem é amigo há muitos anos.

Agora é um restaurante finório. Abre sempre para jantares mas só abre ao almoço quando tem grupos que alugam o espaço.

Hoje em dia já bebe vinho de vez em quando, especialmente aos almoços de sábado que marcam com a viúva quando o restaurante não tem marcações.

Juntam-se para ver a bola e fazem grandes tainadas. Vitor pode não ser de muita conversa mas não perde uma oportunidade de cantar à desgarrada, torna-se outro tal como o gago que não tem hesitações nestas alturas.

Foi aqui que juntaram todos para ver aquela situação dos aviões a baterem naqueles prédios nos Estados Unidos. Ainda se lembra como se tivesse sido hoje, aquilo foi algo terrível, nunca se tinha visto tal coisa.

Em 2013, o FCP ganhou a Supertaça pela quinta vez consecutiva, um orgulho que celebrou com os seus amigos de há tantos anos, a família serena e sempre presente que o tem acompanhado.

A Ribeira foi-se modernizando. São cada vez mais os hotéis de luxo que recorrem aos seus serviços por ser um homem de confiança.

O trânsito foi condicionado nas ruas que ficam perto da Casa do Infante. O que para ali vai de gente e restaurantes foi coisa que nunca tinha imaginado.

Não tem empregados nem quer. Não gosta nem tem paciência de estar a explicar coisas e a malta nova está sempre distraída a esfregar os dedos nos telemóveis.

Já nada se faz sem estes novos telemóveis. Até são necessários para andar de trotinetes, malditas traquitanas que os miúdos deixam em todo o lado.

Vitor não tem cartões de visita, não necessita, todos conhecem o Vitó, o homem dos arranjos.

Já são raras as casas particulares na zona da Ribeira. A maioria dos prédios são hostéis, hotéis, outros alojamentos, restaurantes, cafés e lojas diversas.

Não espantaria que o que têm todos em comum é o número do Vitó escrito em algum papelinho ou no balcão da loja.

O novo smartphone que Vitó pouco mais usa senão para atender chamadas e fazer uns telefonemas, tem o “Azul e branco é o coração” como toque que foi-lhe posto pelo neto da viúva que já é homem feito.

Vitor sabe que o telemóvel já tocou mais vezes do que toca agora e há vezes em que não lhe apetece atender e a máquina fica para ali a tocar até se cansar.

Tem bons olhos, valha-lhe isso, nunca teve que usar óculos e conserva o brilho no olhar que só a serenidade dos anos pode dar mas tem falhado muito a ida ao dentista e bem que precisa.

Desde que o seu barbeiro, nas escadinhas do Barredo faleceu, tem experimentado outros mas não é a mesma coisa. Os moços novos põem a música muito alta e faz-lhe muita confusão mas não passa desta semana, tem que ser.

Mais um número desconhecido que aparece no smartphone.

“ Está? Sim? … o segundo andar da Rua Nova da Alfândega? Sim, sei bem onde é. Mas isso agora não é uma casa de turismo? … a senhora partiu a maçaneta da porta? Como diabo fez isso? … quer entregar a casa em bom estado … acho bem … sim, posso passar por aí às duas da tarde … antes não posso … sim, tenho o seu número no meu telefone e sei muito bem onde é … mas como soube o meu número? … olha, desligou”

Quando tocou à porta do segundo andar da Rua Nova da Alfândega, sentia o cheiro a tintas novas que vinha das paredes das escadas onde estava. No moderno elevador minúsculo só cabiam duas pessoas e não percebia porque razão haveria um elevador de falar … modernices do século XXI.

Não demoraram a abrir a porta, estava combinado para as duas da tarde e Vitó, a contrastar com outros colegas de profissão, era sempre pontual.

Quem lhe abriu a porta devia ser a mesma pessoa que lhe havia ligado de manhã, uma moça nova.

Bem, aos setenta e três anos, todas as mulheres de quarenta anos lhe pareciam novas.

À contraluz Vitor não conseguia ver bem a cara da mulher, além do mais os seus olhos já necessitam de tempo para se ajustarem a grandes mudanças de claridade, mas houve algo estranho no silêncio que se impôs, por momentos ela não respirou.

O olhar da jovem mulher penetrou nos seus olhos como um picador de gelo e uma dor aguda invade-lhe o coração com todo o peso do mundo.

“Olá, sou Maria Dalmau”

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