Encontros adiados



Itziar encostou-se à vedação de madeira que delimitava o Parque Ecológico de Plaiaundi, um santuário para as aves da região.

À sua frente, o estuário de águas tranquilas do rio Bidassoa, à sua direita os contornos de Hendaye e à sua esquerda a silhueta de Hondarribia, a vila basca que a viu nascer e crescer.



Os contornos cada vez mais iluminados pelo sol nascente, começavam a permitir que Itziar distinguisse os edifícios das duas vilas, cada uma em seu país, e o rio Bidassoa a servir de fronteira.

Ontem, quando se deitou, estava tão cansada que pensou que não tardaria a adormecer, mas o seu coração tinha planos diferentes e não parou de dar voltas na cama até que se decidiu por vir ver o nascer do sol.

O velório de Maité, na noite anterior, tinha-a deixado de rastos, ainda não lhe parecia real que esta grande amiga tivesse partido do mundo dos vivos. Nem há uma semana tinha estado quase uma hora ao telefone com Maité e agora, dela só restava o seu corpo sem vida.

Itziar voltou a dar atenção à paisagem, o avançar do dia permitia-lhe começar a ver as casas de Hondarribia.

No ar, o cheiro do lodo do estuário, que tão desagradável pode ser para quem com ele não convive, dava-lhe a sensação de ambiente familiar e lembrava-lhe algumas caminhadas com Maité, na zona das Marismas de Jaizubia, na margem oposta do estuário.

Ao ver o dia amanhecer, assaltava-lhe o medo que o mesmo avanço do tempo lhe revelasse o erro dos muitos encontros adiados com Maité. Erros impossíveis de corrigir.

A grande pergunta que lhe atormentava agora, era porque razão adiamos encontros com amigos que preenchem a nossa vida.

Itziar sentiu que tinha caído na ratoeira da rotina diária dos horários totalmente preenchidos.

O trabalho, o ginásio, a família e tantas outras atividades das quais não se lembrava, entupiam-lhe constantemente a agenda.

Sabe agora que, de longe, admirou essa armadilha consciente da sua existência, mas, ainda assim, não se afastou da rota que a deixou prisioneira.

Sair dessa ratoeira exigia uma energia que dizia não ter, e neste momento não consegue saber porquê. Não faz sentido.

Itziar orgulha-se da sua vida profissional, mesmo que o seu sucesso seja mediano e não tenha conseguido tudo o que queria, mas afinal, muito do que sonhou eram mesmo só isso, sonhos.

Por outro lado, todos sabemos que ao fim do dia, depois de tratar da casa e dos filhos, caímos mortos no sofá e adormecemos a ver um filme, do qual no dia seguinte nem nos lembramos muito bem qual era.

“São opções, temos que lutar pelas nossas opções” pensava Itziar que ao mesmo tempo dizia que algo não podia estar certo se tinha que justificar-se a si própria.

Depois de uma altura de muito convívio entre as duas amigas, cada uma tinha constituído a sua própria família e, sem darem por isso, passaram-se os dias, os meses e os anos com cada vez menos encontros.

O tempo passou, e durante todo esse tempo, as duas amigas sempre trocaram mensagens que agora Itziar aproveitava a ocasião para rever.

Mas, ao procurar as mensagens antigas que lhe lembrariam a amiga, Itziar vê que só tinha as mensagens dos últimos meses porque, as anteriores, essas tinham desaparecido com um telefone que caiu ao rio numa travessia de Hondarribia para Hendaye.

A luz do telefone onde procurava as mensagens, iluminou o espaço do santuário das aves e os pássaros da madrugada pararam o seu chilrear constante e foi então que Itziar levantou a cabeça como se voltasse a dar conta de onde estava.

Durante os dias normais, através das mensagens, Itziar tinha a sensação de estar sempre contactável. Qualquer amigo ou amiga a conseguia encontrar.

Sentia que as mensagens eram apaziguadoras da saudade. Mas, se assim era, então porque sentia tantas saudades da amiga?

Talvez porque estas mensagens não substituíram o calor de um abraço ou o simples par de beijinhos que trocamos quando nos encontramos.

Agora, à distância, Itziar percebia que estas formas de comunicação virtual, não passam de maneiras de atenuar a dor da saudade que antes as atraia para se encontrarem. Afinal, as mensagens só calaram a voz interior que as ordenava ao encontro, mas nunca mataram as saudades.

Porque não pensou isso antes? 

Mas, por outro lado, sabia que nada disto era novo e essa consciência entristeceu-a profundamente.

Será que um dia Itziar se irá lembrar das mensagens como se lembra dos bons tempos de farras em noites memoráveis ou de um simples encontro para café rápido? Não sabia, mas algo em si não confirmava esta hipótese.

Será que perdurará no tempo a gratificação instantânea que teve das vezes que Maité, nas redes sociais, reagiu a uma fotografia ou texto? Quantas memórias profundas Itziar irá ficar dessas ditas gratificações? Alguma, pelo menos?

No entanto, lembrava-se da cor de vestidos que trocaram ou do cheiro dos bronzeadores que partilharam nas tardes de praia de Donostia. Estava confusa e não sabia o que pensar de tudo disto.

Mas não podia dizer que não sabia.  

Este não é um tema novo, aliás é amplamente repetido em mensagens patéticas nas redes sociais onde Itziar sempre gasta o seu tempo a esfregar os dedos no écran.

Ainda assim, na noite anterior, durante o velório, a outros amigos com quem há muito não se encontrava pessoalmente disse “temos que combinar qualquer coisa”, sabendo que não passavam de promessas para encontros que seriam eternamente adiados tal como um dia aconteceu com Maité.

Fazemos planos que sabemos iremos frustrar.

Porquê?

“Maité, agora que já não te posso mandar mensagens, dói-me toda a saudade que antes não foi suficiente para me levar ao teu encontro.”

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